A Trilogia: Nós não precisamos de aberrações como você
Joie: Então, Willa, nas duas últimas semanas, vimos duas das três obras de Michael Jackson que você diz que forma a estética de A Trilogia – "Ben" e Thriller. Esta semana, vamos falar sobre o trabalho final nessa trilogia –Ghosts – e falar sobre como ela se encaixa e como todos os três parecem lidar com a complicada questão de cruzar as fronteiras que nos separam. Como todos sabemos, esse é um assunto que Michael tratou muitas vezes em na carreira delee, para você, essa ideia de trilogia é muito importante por essa razão, certo?
Willa: Realmente é; em parte, porque cada uma dessas obras é tão importante individualmente, e em parte porque olhar para elas em conjunto nos permite ver a evolução das ideias dele.
Em "Ben", que foi gravada em janeiro de 1972, Michael Jackson assume o papel de um jovem rapaz que se torna amigo de um rato. A maioria dos humanos veem ratos como repugnante, como "outros", portanto, essa amizade é um ato socialmente transgressivo. Em outras palavras, "Ben" é a história de uma amizade imprópria. Mas ela apresenta essa relação tão especial e tão bonita, que nos desafia a alterar as nossas percepções sobre a amizade pouco convencional.
É importante ressaltar, porém, enquanto o menino e o rato atravessam as fronteiras sociais, elas são fronteiras externas. O que quero dizer é que eles cruzam a fronteira entre eles, tornando-se amigos, mas o rapaz continua a ser um menino e o rato continua a ser um rato.
É importante ressaltar, porém, enquanto o menino e o rato atravessam as fronteiras sociais, elas são fronteiras externas. O que quero dizer é que eles cruzam a fronteira entre eles, tornando-se amigos, mas o rapaz continua a ser um menino e o rato continua a ser um rato.
Doze anos depois, em dezembro de 1983, Michael Jackson lançou o vídeo de Thriller, e expande as ideias de "Ben" de forma crucialmente importantes. Mais uma vez, Michael Jackson é um jovem atravessando fronteiras proibidas socialmente, mas desta vez esses limites estão dentro de si. Ele se torna um lobisomem, que borra a fronteira entre homem e animal, e então se torna um zumbi, que borra a fronteira entre vivos e mortos.
Então Thriller não é sobre uma amizade "imprópria", mas sobre uma pessoa "imprópria", cuja identidade está em constante fluxo. Por isso, interioriza a travessia desses limites e altera a forma como perceber e responder a essa pessoa não convencional, bem como o modo como percebemos e, talvez, expressamos as fronteiras proibidas nos sentimos dentro de nós mesmos.
O que é especialmente interessante sobre Thriller, porém, é como ele retrabalha as emoções desta questão. Basicamente, Thriller nos diz que cruzar fronteiras não é assustador – é divertido! É emocionante, na verdade. Olhe para os personagens de Michael na tela.
Qual deles você quer ser? O reprimido Michael no início, que está tentando arduamente ser uma pessoa correta, ou o Michael de espírito livre, que está se soltando e dançando com zumbis?
Como você disse muito bem na semana passada, Joie, ele está "habitando essas diferenças" Ele as sente dentro de si mesmo – ele está abraçando os diferentes aspectos da personalidade dele, incluindo as partes assustadoras ou vergonhosas que estamos instruídos a manter escondidas – e ele está tendo uma explosão! Basta olhar para ele dançando e olhar para o rosto dele no final, quando ele se vira e no encara com aqueles bestiais olhos de gato.
Ele está radiante! Ele não poderia estar mais feliz. Thriller lida com tudo isso com tanta habilidade e sem esforço que não nos damos conta de que isso é mudança psicológica radical, mas eu acredito de Thriller funciona em um nível psicológico profundo para desafiar alguns de nossos medos mais primitivos sobre diferença, sobre o "outro", e as neutralizam. E é brilhante.
Treze anos depois, em 1996, Michael Jackson criou Ghosts e deu mais um salto quântico. Desta vez, ele está se aproximando da questão de uma forma teórica e sugerindo formas específicas em que a arte pode nos ajudar a superar as fronteiras entre nós. Em outras palavras, Ghots não é apenas uma obra de arte. É meta-arte – é arte sobre a arte – e nela nós vemos evidência de Michael Jackson criando uma nova poética.
Joie: Você sabe, Willa, isso é algo que você diz muitas vezes – que Michael estava criando uma nova poética. Pode explicar o que você quer dizer em termos muito simples para aqueles que não podem entender o que é que você está tentando dizer?
Willa: Essa é uma pergunta realmente boa, Joie. Existem muitas definições diferentes, na verdade, mas o que quero dizer é que ele está criando uma nova filosofia da arte ou um novo paradigma para a conceituação de arte – um novo quadro teórico para compreender o que é arte, como ela funciona, e qual o potencial que ela tem para realizar.
Você sabe que, se voltar e olhar para os grandes artistas da história – artistas como Da Vinci, Michelangelo, Vermeer, Monet, Van Gogh, Picasso, Warhol – eles não apenas criaram obras de arte importantes. Eles também alteraram a nossa definição de arte, e é isso que Michael Jackson está fazendo. Ele está criando obras de arte impressionantes, mas ele também está redefinindo o que é arte e expandindo nossas ideias sobre o que é possível através da arte. E é por isso que ele é o mais importante artista do nosso tempo.
Joie: Ok, então vamos falar sobre o que está acontecendo em Ghots e por que você sente que ele é parte da trilogia. Você diz que Ghosts é arte sobre arte, mas como ele se encaixa com o tema de cruzar as fronteiras que nos mantêm separados?
Willa: Bem, como já falamos antes, Ghosts é a história de um artista – um Maestro – que está sob ataque pela população provincial do Vale Normal. Eles estão com medo dele porque ele é tão irritantemente diferente – eles pensam que ele é uma "aberração", um "esquisitão" – assim se aproximam da casa dele com tochas na mão, determinado a afastá-lo.
Mas algo inesperado acontece: o Maestro os envolve em uma série de experiências artísticas, e através dessas experiências artísticas, não só muda como eles se sentem sobre ele, mas como eles se sentem sobre a diferença em geral.
Então Ghosts está funcionando em vários níveis ao mesmo tempo. Em um nível, é puro entretenimento e nos envolve em uma história interessante. Em outro nível, está criando uma parábola para o que realmente estava acontecendo com Michael Jackson na vida real, e explicando como ele pretende responder, como um artista, às ameaças de Tom Sneddon e outros contra ele.
E em outro nível, é arte que fala sobre arte e demonstra como a arte pode mudar a percepção e trazer uma mudança social significativa – assim como ele altera as percepções e atitudes dos moradores de Vale Normal.
Joie: Isso é realmente muito interessante, Willa. Você sabe, eu já disse isso antes, mas eu realmente sinto que eu preciso dizê-lo novamente. Antes de você me pedir para ler M Poetica e dar a minha opinião sobre isso, eu nunca pensei sobre o trabalho de Michael em um nível artístico tão profundo antes.
E agora eu sei que era porque eu realmente não tinha as ferramentas ou o conhecimento para fazê-lo. Mas eu realmente sinto que você me ensinou muito sobre arte e sobre como interpretar a arte e estou muito grata por isso. Isso me permitiu realmente examinar o trabalho de Michael de uma maneira que eu nunca tinha antes.
Willa: Bem, acredite, Joie, eu sei exatamente como você se sente. Gostei de Thriller por anos simplesmente como um vídeo muito divertido. Na verdade, eu ainda gosto desse jeito, e isso está perfeitamente certo. Na entrevista à MTV, em 1999, citada na semana passada, Michael Jackson é perguntado sobre o que faz um bom vídeo musical e a primeira resposta dele é: "Em minha opinião, tem que ser completamente divertido."
E ele conseguiu: o trabalho dele em geral, e Thriller, em particular, é maravilhosamente divertido.
Mas tanto quanto eu apreciei Thriller simplesmente como entretenimento, cada vez mais eu sentia que havia muito mais coisas acontecendo, mas eu simplesmente não conseguia me concentrar de alguma forma. Eu podia sentir que algo importante estava acontecendo, mas eu não conseguia explicá-la, nem mesmo a mim mesma.
Foi quando eu comecei a estudar Ghosts que algo clicou para mim. Como mencionei anteriormente, Ghosts não é apenas uma obra de arte, é também a arte de falar sobre arte, e explorar formas específicas de como a arte pode mudar a mente das pessoas sobre a diferença e trazer a mudança social.
E como eu estudei isso e pensei sobre isso, de repente eu percebi que os processos específicos que ele está descrevendo em Ghosts estão acontecendo em Thriller. Então, basicamente, Ghosts me deu as ferramentas que eu precisava para interpretar Thriller em uma forma totalmente nova. Para mim, Ghosts abriu um novo caminho para pensar a arte, e esta nova visão me permitiu ver Thriller de maneira que nunca tinha visto antes.
Assim, Michael Jackson não está apenas criando um novo tipo de arte que funciona de uma maneira nova, o que é surpreendente o suficiente. Ele também está nos fornecendo o aparato teórico que precisamos para interpretar esse novo tipo de arte. E Joie, isso simplesmente me deixa chocada. Como artista, ele é incrivelemente inteligente e incrivelmente criativo – incomumente brilahnete – e eu acho que nós estamos apenas começando a perceber as profundezas do trabalho dele e as implicações tremendas do que ele está nos mostrando.
Joie: Bem, eu concordo completamente que ele é "incomumente brilhante" como você colocou. Eu não acho que ninguém iria contestar isso. E eu tenho que dizer que, eu realmente amo a sua observação de que Ghosts é a "arte de falar sobre arte." Isso não é apenas uma declaração muito profunda de fazer, mas foi também um movimento muito profundo, muito ousado para Michael Jackson fazer. Criar um vídeo – uma obra de arte – que fala sobre arte e as maneiras que nós podemos usá-lo para educar e mudar a mente das pessoas sobre as injustiças sociais que nos rodeiam. Isso é uma coisa incrível!
Willa: Realmente é. E em Ghosts, podemos vê-lo diretamente abordar uma questão muito específica sobre a arte e o poder da arte: Como pode um artista usar a arte para mudar a mente das pessoas sobre aqueles que rejeitam como diferente, especialmente quando a antipatia deles se baseou em narrativas falsas e preconceitos infundados?
Como mencionei anteriormente, Ghosts começa com os moradores do Vale do normal que se aproximam da casa do Maestro, com a intenção de expulsá-lo porque pensam que ele é monstruoso, uma “aberração”. E as emoções deles naquele momento são bastante complicadas: eles temem, mas eles também estão animados e fortalecidos pela ideia de expulsá-los.
Como discutimos em um post sobre Ghots há algumas semanas, o Maestro responde para as pessoas da cidade com um processo de duas fases. Primeiro, ele assume os medos e desejos dele, e reflete essas emoções de volta para eles: ele aparece para eles usando uma máscara, dessa forma dá a eles o monstro que quer que ele seja. Mas então ele abaixa a máscara e revela que é apenas uma ilusão. Essa é a segunda fase. E este rápido vominto duplo, de primeiro inflar os medos e desejos deles e esvaziá-los, fornece um tipo de catarse, e ajuda a neutralizar as emoções que eles estão projetando em cima dele.
Mas o prefeito não quer que esses medos sejam neutralizados. O objetivo dele é exatamente o oposto – ele quer agitar as emoções e manter o povo em um estado de medo e agitação. Assim, ele começa a construir o caso dele contra o Maestro: que ele é uma "aberração", um desconhecido assustador, um monstro que está infectando as crianças da cidade com histórias de fantasmas misteriosos. Em resposta, o Maestro, mais uma vez, evoca o movimento de duas fases, de encarnar e inflar as emoções que eles estão projetando nele e esvaziá-las. Primeiro, ele distorce o rosto, tornando-se grotesco e assustador. Aqui estão algumas capturas de tela:
Então, ele rasga o rosto dele por completo, e não há nada além o crânio rindo. Porém, mais importante, depois de os habitantes da cidade ter vivido plenamente essas emoções que eles estavam projetando nele, ele quebra o crânio, revelando a verdadeira face dele e mostra que é tudo apenas uma ilusão.
Assim, ele encena este processo de duas fases uma terceira vez, mas é um pouco diferente desta vez, porque as emoções deles mudaram, portanto as emoções que eles estão projetando nele mudaram. Eles não estão tão com medo dele como eram antes, na verdade, eles estão começando a gostar dele e da trupe de "bizarros" bailarinos dele, mas eles ainda não têm certeza sobre ele e ainda querem que ele vá parta, embora eles estejam em conflito sobre isso.
Assim, ele encena essas emoções para eles: ele destrói a si mesmo e vira pó diante dos olhos deles. Mas depois ele reaparece e mais uma vez mostra que era apenas uma ilusão. Dessa forma, repetidamente, vemo-lo incorporando e até mesmo exagerando os medos e desejos que o povo da cidade está projetando em cima dele, e depois dissolvendo esses mesmos medos e desejos.
Joie: Eu acho que é muito interessante o fato de que ele repete este processo, várias vezes, ao longo deste curta-metragem. Isso me deixa saber que ele estava realmente tentando fazer um ponto. Há algo que ele quer que nós realmente peguemos... Alguma ideia que ele quer que nós realmente entendamos e compreendamos. Caso contrário, por que ficar se repetindo?
Willa: Isso se parece assim para mim também. Ele encena esse duplo movimento três vezes em Ghosts, uma após a outra – na verdade, esse é basicamente o enredo de Ghosts, essa série de três movimentos duplos – o que me diz que isso é realmente significativo. Significativamente, isso é exatamente o que ele está fazendo em Thriller, também, como falamos na semana passada.
Na verdade, o enredo de Thriller é também uma série de três movimentos duplos – ou melhor, dois e meio, pois o último termina sem resolução – e se olharmos para o que estava acontecendo em 1983, a trama de Thriller faz todo o sentido. No início de 1980, ele era primeiro ídolo adolescente negro da nossa nação, o que era ao mesmo tempo excitante e monstruoso para um monte de gente. Portanto, ele responde, tornando-se um monstro na tela – um lobisomem, um zumbi, uma criatura desconhecida com olhos de gato – mas em seguida neutraliza essas emoções, mostrando-nos que "É apenas um filme."
E eu acredito que ele respondeu à histeria da mídia em torno das falsas alegações de abuso sexual da mesma forma. Através da ilusão de cirurgia plástica, fez-se monstruoso na mente do público. Mas é apenas uma ilusão. Ele está apenas refletindo o que o público está projetando em cima dele, como ele explica muito claramente em "Is It Scary":
Eu serei
Exactly
what you wanna see
Exatamente
o que você quer ver
It’s you
who’s taunting me
É você que
está me provocando
Because
you’re wanting me
Porque
você quer que eu seja
To be the stranger in the night
O estraho na noite
Am I
amusing you
Eu estou
divertindo você
Or just
confusing you?
Ou estou
confundindo você
Am I the
beast you visualized?
Eu sou a
besta que você visualizou?
And if you
wanna see
E se você
quer ver
Eccentric
oddities
Estranhas
excentricidades
I’ll be
grotesque before your eyes
Eu serei
grotesco diante de seus olhos
Let them
all materialize. …
Deixe que
todas elas se materializem...
So did you come to me
Portanto,
você veio a mim
To see your fantasies
Para ver suas fantasias
Performed before your very eyes?
Apresentadas
bem diante de seus olhos
A haunting
ghostly treat
Um deleite
de assombração fantasmagórico
The ghoulish trickery
O truque macabro
And spirits dancing in the night?
E
espíritos dançando na noite?
But if you came to see
Mas se
você veio para ver
The truth, the purity
A verdade, a pureza
It’s here
inside a lonely heart
Está aqui
dentro um coração solitário
So let the performance start
Então
vamos deixar a performance começar
So tell me, Is that realism for you, baby?
Então,
diga-me, Isso é realism para você, baby ?
Am I scary for you? Eu sou assustador para você?
O escândalo de cirurgia plástica era, de fato, um tipo de arte performática, mas era um tipo inteiramente novo de arte, diferente de qualquer outro que já vimos antes. Era o "realismo" em uma escala que nunca experimentamos antes. É como um novo tipo de arte que é difícil reconhecr no início, mas é uma obra de arte com um propósito e função muito específica para reescrever uma falsa narrativa cultural e fornecem catarse para as emoções que dirrigem essa falsa narrativa.
Isso é de tirar o fôlego em sua audácia, mas assim que nós colocamos nossas mentes em torno disso, percebemos que é construído em princípios sólidos de arte e psicologia – e a intersecção da arte e da psicologia, especialmente a psicologia de grupo, é o foco principal da estética de Michael Jackson. Em outras palavras, ele está perfeitamente alinhado com os princípios artísticos que ele está estabelecendo em Ghosts e toda a obra dele.
E Joie, eu não posso dizer enfaticamente o quão importante e radical esse trabalho é. Em M Poetica, eu disse que eu vejo o rosto dele, como a obra-prima dele, e acredito nisso fortemente. Eu amo a voz, a música, a dança e os filmes dele – você sabe o quanto eu os amo – mas o rosto dele, e as ilusões que ele realizava através do rosto dele, aponta o caminho para um novo tipo de arte que tem o potencial para desafiar alguns dos nossas mais arraigadas narrativas culturais e reescrever essas narrativas. E isso é verdadeiramente revolucionário.
Joie: Willa, eu amo o jeito como você coloca isso: "É de tirar o fôlego na sua audácia." Essa é uma afirmação tão verdadeira quando se trata de qualquer coisa a ver com Michael Jackson. Eu acho que essa frase resume muito bem toda a carreira e personalidade dele. Ele era "de tirar o fôlego em sua audácia!"